terça-feira, 23 de junho de 2020
Por Antonio Noberto, 
*Turismólogo e membro-fundador da Academia Ludovicense de Letras - ALL

Mês passado estávamos no Espírito Santo e, de lá, escrevemos para esta coluna comentando um pouco da riqueza dos atrativos históricos do estado, bem como a aproximação da reta final da nossa pesquisa às principais necrópoles do país, com vistas à compilação de um livro sobre o tema. E com este objetivo, visitamos, por último, Manaus e Porto Velho concluindo assim nossa diligência a estes sítios.

Foram cinco anos de pesquisa, trabalho, visitação, estudo, dificuldades e empenho para atingirmos nosso alvo. Nosso périplo foi, na verdade, uma senhora aula de cultura e conhecimento sobre o Brasil e os brasileiros que ajudaram a fazer o país e o mundo, um esplendoroso banho cultural. Além disto, aprendemos o imenso valor da arte cemiterial, chamada de última arte, e as histórias e estórias que permeiam estes espaços. Tão importante quanto, foi o contato com pessoas maravilhosas, que nos ajudaram contribuindo para o sucesso da pesquisa, e daí nasceu boa amizade. Foi assim em São Luís, Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Florianópolis, Porto Alegre, São Borja, Salvador, Recife, Natal, Belém, Manaus, Porto Velho, Brasília, Belo Horizonte, e em inúmeros outros lugares. Fomos sempre recepcionados calorosa e acolhedoramente. Ouvimos muitas declarações felizes, apaixonadas, e incentivos para nunca desistirmos do propósito, face ao grande valor da obra. E neste rio de incentivos encaramos como um ministério.

Várias situações marcaram nossa peregrinação, das quais sucintamente mencionaremos três. Uma delas se deu em São Paulo, no cemitério do Araçá. Chegamos, procuramos a administração e solicitamos o serviço de guia. Apareceu-nos um rapaz magro, negro e alto. Começamos o passeio, ele na frente e eu e minha companheira, Aline, um pouco atrás. Ele caminhava e falava como se estivesse apenas cumprindo o ritual de sempre. Foi aí que falei do nosso trabalho de pesquisa e dos passeios musicados desenvolvidos no Gavião. Ele parou, virou pra gente, arregalou os olhos e disse: “Como é que é, rapá”? Daí foi aquele sorriso, e o ambiente, antes frio e lúgubre, converteu-se em visível felicidade, pois desde aquele momento ele viu que não estava só, naquele propósito de valorização de
algo tão importante em qualquer sociedade, o ambiente cemiterial, com todo seu elenco e acervo cultural de conscientização. 

O nome deste guia é Osmair Camargo, o Fininho, ele já esteve inclusive no programa do Jô Soares, da Rede Globo. As outras duas figuras são de Porto Velho, Orlando “Carica”, de mais ou menos sessenta anos, e Alberto, idem. Carica é um ex-integrante da banda que tocava para Jorge Bem Jor. Em 1982, após um show na noite anterior, ele perdeu o avião que o levaria de volta ao Rio de Janeiro. O prefeito da cidade o encontrou no aeroporto, reconheceu-o e convidou-o a ficar e assumir um cargo na secretaria de cultura. Ele topou, casou-se – com a namorada que encontrou na noite do show – e atualmente está aposentado e é vice-presidente da associação do bairro onde mora. Conhecemos-nos assim: eu acabava de chegar a capital de Rondônia, estava só, de carro, e querendo visitar o cemitério da Candelária – que hoje se encontra abandonado, engolido pela floresta e quase extinto. Encostei o carro ao lado de Carica, e perguntei se ele poderia ir comigo até o local. Ouvi tristemente ele me dizer que a saúde não permitia, mas, como a minha causa “é muito nobre” ele iria conseguir alguém para ir comigo. 

Foi aí que recebi a ajuda de Alberto, um funcionário aposentado da ferrovia Madeira-Mamoré, um saudosista dos áureos tempos da estrada de ferro. Alberto já foi guia de alguns estrangeiros que visitam o que sobrou do cemitério, atrás de alguma informação sobre algum dos quase dois mil estrangeiros mortos quando da construção da ferrovia à época da exploração da borracha. Eu, que sempre tive curiosidade de conhecer Porto Velho e o que sobrou do cemitério da Candelária, percebi a emoção que brotava dos olhos daquele saudosista dos idos tempos da Madeira- Mamoré Railway Company. 

Alberto é um dos que afirmam que ainda escuta a locomotiva fantasma avançar sobre os trilhos enferrujados e abandonados da ferrovia. Um conto da cripta que, evidentemente, fará parte do livro que desenvolvemos. A emoção manifesta por estes três personagens reflete o sentimento de espera do resgate histórico das mil histórias deste imenso país por parte dos nacionais. Um sonho que poderá ser realizado pelo turismo e, muito mais, pela iniciativa dos profissionais da área, a final, o resgate da memória do brasileiro é uma causa mais do que nobre.

Texto Originalmente publicado na Edição N° 50 junho 2008 do Jornal Cazumbá

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