domingo, 13 de dezembro de 2020

Por: Natalino Salgado Filho


A semana que passou trouxe consigo um gosto acre de despedida involuntária para todos nós da Academia Nacional de Medicina. Perdemos o acadêmico e confrade Ricardo José Lopes da Cruz, Secretário Geral daquele augusto sodalício, vítima de Covid 19, no último dia 8. Médico festejadíssimo, ostentava um currículo impecável e era extremamente querido por todos.

A perda irreparável do ilustre confrade soma-se às partidas de Hiram Silva Lucas, Marcos Fernando de Oliveira Moraes, Eustáquio Portela Nunes e Hildoberto Carneiro de Oliveira, também integrantes da ANM, cujo destino encarregou-se de encurtar-lhes os passos, neste 2020.

De convivência mais recente com Ricardo na casa que nos irmanou, sensibilizaram-me muito as declarações de afeto dos demais confrades. A doença maligna e silenciosa, que democratiza sua contaminação, ignora que vitimou um dos maiores cavaleiros defensores da vida. Ricardo passa a integrar a estatística de 180 mil vítimas fatais da pandemia que colocou o mundo de joelhos, mesmo que alguns insistam em não enxergar o óbvio. Sem remédios específicos ou vacina ainda disponível, as medidas preventivas - como distanciamento social, uso de máscaras, desinfecção de objetos e superfícies aliadas à higienização constante das mãos - são nossas únicas aliadas, a despeito da necropolítica praticada em algumas esferas.

A morte de Ricardo é mais um aríete para nos despertar – nós, médicos; nós, cidadãos; nós, humanos – da indolência apática ao assistir, repetidamente, os noticiários que informam outras vítimas. Lembro da escrita de John Donne e sua obra que registra suas devoções – exatamente 23 – para os dias em que esteve internado. Donne se solidariza e se irmana com o sofrimento de outros seus iguais e cunha a constatação que tornou célebre a obra: “(...) a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”  A certeza é uma só: todos somos iguais, a morte nos limita. Séculos mais tarde, o escritor americano Ernest Hemingway publicaria o livro com o título “Por quem os sinos dobram”, trazendo suas impressões sobre a guerra civil espanhola. 

Não é porque estamos cá vivos que devamos nos esquecer do perigo que nos ronda diariamente. Da dor que invade, neste instante, outros lares. Dos porta-retratos que serão lembranças dolorosas na sala de estar de outras famílias, enquanto muitos de nós se preocupam tão somente com o cardápio da ceia de natal ou com o lugar onde passar o Revéillon. Estamos todos presos à mesma sina. Somos todos integrantes de uma mesma condição de incertezas e desafios.

O passado é professor competente. São próprias de seu magistério as lições de outras situações semelhantes, vividas em solo brasileiro. Com uma escrita arguta e peculiar, as escritoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Stariling apresentam em “A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil”, disponível no formato e-book, uma descrição acerca da doença que assolou o Brasil no início do século XX até os idos de 1919, deixando um rastro de morte, miséria e muita briga política. No olho do furacão, a população pobre e desassistida.

Abstraídos o calendário e o nome da doença, tem-se a impressão de que as querelas retratadas foram fruto da observação deste 2020 e que a doença se chama Covid 19. Vamos olhar em volta a realidade, verificar o que acontece à nossa volta. Palavras mágicas não têm o poder de fazer desaparecer o vírus.

Das lágrimas alheias, devemos tomar-lhes as lições. Mais do que números, cada vida ceifada deixou projetos inconclusos, sonhos a alcançar, dias a somar no calendário dos anos. A mitologia grega insculpida em Élpis, a esperança, foi a única que sobreviveu à insensata decisão de Pandora em abrir a caixa recebida dos deuses. Se o presente nos parece sombrio e aterrorizante, façamos as pazes com ele. Tenhamos paciência. E que a esperança não nos abandone, mesmo sabendo que as palavras não amenizam os fatos. 

Natalino Salgado Filho - Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina

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