domingo, 15 de janeiro de 2023


Saudade dos amigos que nunca mais vimos, dos amores que acabaram e dos familiares que já se foram. se você tem alguma saudade que ainda dá pra matar, leia o texto até o final.

Samba de Benção


É melhor ser alegre que ser triste

Alegria é a melhor coisa que existe

É assim como a luz no coração


Mas pra fazer um samba com beleza

É preciso um bocado de tristeza

É preciso um bocado de tristeza

Senão, não se faz um samba não

(…)

Fazer samba não é contar piada

E quem faz samba assim não é de nada

O bom samba é uma forma de oração


Porque o samba é a tristeza que balança

E a tristeza tem sempre uma esperança

A tristeza tem sempre uma esperança

De um dia não ser mais triste não


Foi em um apartamento com vista para o Palácio das Laranjeiras e o Cristo Redentor, que nasceu “Samba da Benção”. Citada até pelo papa Francisco, a música foi composta por Vinícius de Moraes e Baden Powell, em 1960.

• No início, o poeta ensina que “é melhor ser alegre que ser triste". Porem, logo depois, já reconhece que sem melancolia não dá pra fazer samba.

De forma poética e gostosa, a letra dá um jeito de mostrar como esse ritmo musical enxerga a tal da felicidade. Por essa ótica, para chegar na alegria, é preciso percorrer um chão de tristeza.

Mas e o Carnaval?” Ainda que as purpurinas e o colorido exuberante dos desfies tentem nos dizer o contrário, basta prestar atenção nas melodias para perceber: a tristeza é a raiz do samba.

E, como a arte imita a vida, é fácil notar que o mesmo padrão se aplica ao nosso dia a dia — quantas lágrimas existem por trás de uma foto cheia de saturação no feed do Instagram?

Se você pensar bem, vai ver que todos os nossos sentimentos são baseados em contrastes. Só conhece a fome quem já esteve satisfeito. Só sente o calor quem sabe o que é o frio. Só é feliz quem sabe ser triste.

Mas a tristeza do Vinícius é diferente. Enquanto alguns a lamentam no quarto, ele faz o estilo melancólico apaixonado, e vai dançar com as lágrimas.

Talvez o caminho da felicidade não seja afastar os sentimentos ruins, mas enxergar que eles também têm sua beleza. Afinal, só chora de saudade quem já foi feliz com a presença.

Pegando emprestadas as palavras de Augusto dos Anjos, “a esperança não murcha e não cansa.” E, se um dia já sorrimos, o samba pode ser mesmo uma forma de oração “de um dia não ser mais triste não.”

ELA, ele, eu?

Aos 60 anos, Seu Carlos foi acometido por uma fraqueza que chegava de mansinho e não partia. Às escondidas, amassava alho, mastigava devagar, engolia — “alho tudo resolve, vai resolver isso também”.

Depois foi a fala. Titubeava, enrolava, era difícil entendê-lo. As pessoas se esforçavam. Então vieram as cãibras e espasmos musculares, o pescoço caiu, a cabeça pendeu, e precisou usar colar cervical.

• ”O que ele tem?” Ele não sabia, a família também não. Sabiam apenas que o Seu Carlos havia mudado.

Aquela presença sempre alegre, que ajudava a todos do bairro, tornou-se uma pessoa sensível, que se emocionava fácil, e chorava: “não sei mais distinguir tristeza e felicidade”.

Antes de tudo… Seu Carlos era carioca, pai de duas filhas, casado com a mesma mulher há mais de 20 anos. Sua fé o movia e motivava, era um conhecedor nato da bíblia e dos versículos, orava por quem precisasse.

Era amante da bossa nova de Tom Jobim e do samba de Paulinho da Viola,mas também de Frank Sinatra e Andrea Bocelli. Gostava de cantar e fazer churrasco. Amava seu neto. E bala de tamarindo.

• Seis meses depois dos primeiros sintomas, soube ser portador de uma doença incurável, chamada ELA. 

O SUS fechou o diagnóstico, mas a ciência ainda não conseguia explicar a causa da doença. Para Carlos, restou a indignação: “então é assim? Minha vida acaba ali, logo adiante, por conta dessa ELA que nem a Medicina sabe de onde veio?”

No fundo, o que ele sentiu é só dele. Para a família, restou buscar nas orações algum alento e explicação para tamanha injustiça. Como a vida abriria mão de alguém com tanto talento pra vivê-la?

Foram meses difíceis. Seu Carlos piorava lenta e progressivamente, cumprindo a profecia médica e história clínica da doença. Deixou seu posto de vigia no cursinho de inglês, e foi ficando cada vez mais emotivo e fraco.

• A medicina e as orações não fizeram efeito. Nem o cuidado e amor da família impediram o inevitável: 6 meses após receber o diagnóstico, Carlos faleceu.

Quem conta essa história é a Letícia, sua filha. Assim como o pai, ela sonhava em ser médica, mas nunca pensou que conseguiria. Então, fez como Seu Carlos, e deixou a ideia guardada na gaveta.

Até que… Três anos depois que ele se foi, ela resolveu tentar. Sem contar pra ninguém, se inscreveu no vestibular e teve uma surpresa incrível: ganhou uma bolsa de 100% para fazer o curso.

Atualmente, aprendendo a cuidar, ela diz que só a técnica era insuficiente pra ele. Citando Abel Salazar, Letícia acredita que “o médico que apenas sabe medicina, nem medicina sabe”. 

Às vezes, ela tem a impressão de que seu pai ainda vai aparecer. Mas não como paciente, e sim como aquele cara que gostava de viver. Falaria sobre seus cantores prediletos, reclamaria do FHC e riria com os Três Patetas.

• Parece que foi ontem que eles cantaram juntos — desafinados — “Tiro ao Álvaro”, acompanhando a Elis Regina e o Adoniran Barbosa.

Parece que foi ontem que assistiram na televisão o concerto do Andrea Bocelli no Central Park. Em uma mistura de esperança e ilusão, parece que amanhã eles ouvirão, pela milésima vez, “Georgia on My Mind”, do Ray Charles.

Joan Didion dizia que“quem sofre uma perda fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto”. 

A falta do Seu Carlos ainda dói, e a Letícia consegue observar o mesmo aperto naqueles que perderam alguém que amam. Há dois anos, ele partiu. Mas ainda parece que vai entrar pela porta de casa. Sem ELA. Sorrindo.

Baseado em uma história real.

Extraído: The stories

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