domingo, 24 de setembro de 2023

Se você sofre ao pensar que não existe garantia de reciprocidade, tente ver de outra forma: o que preenche um coração é a simples capacidade de amar.

Amor Unilateral


“Sempre amamos sozinhos, pois cada um ama a seu próprio modo, cada um ama com sua história, com seu sintoma, com suas perebas psíquicas, com seus perrengues transgeracionais”.

O trecho faz parte do livro “A gente mira no amor e acerta na solidão”, da psicanalista Ana Suy, que usa das suas experiências pessoais e profissionais pra ter uma conversa íntima com o leitor.

• A ideia da autora é pensar na solidão como um sentimento comum a todos os seres, que não se esgota quando entramos em um relacionamento.

Partindo da ideia de que somos seres faltantes, ela defende que é preciso livrar do outro o compromisso de nos salvar. Em suas palavras, “ninguém salva ninguém no campo do amor”.

Se você parar pra pensar, vai ver que o amor é unilateral. Não apenas o amor romântico, mas qualquer tipo de gostar que a gente tem sobre alguém.

Isso porque o coração alheio é sempre um mistério. Além de não termos a certeza da veracidade daquilo que o outro diz, jamais saberemos se a sua concepção de amor é equivalente à nossa.

• Pensando em relações sólidas e duradouras, o que pode existir são dois amores, cada qual do seu jeito.

Ainda que muitos sintam um aperto no peito ao ler isso, saber que o amor é solitário é também libertador. No final do dia, não é a garantia de reciprocidade que vai te preencher, mas a simples capacidade de amar.

Finalizando com as palavras da Ana Suy, “ao encontrar um amor, não encontramos a parte que nos faltava até então: encontramos a metade que fará falta a partir dali”.

O último gole
(Baseado em uma história real)


Em uma de suas memórias mais antigas, a Maria lembra de ter perguntado para o seu pai o que era o amor, e ouvir como resposta que “amor era quando ele lhe dava o último gole do Yakult”.

Desde então, ela passou a associar o amor a uma espécie de cuidado. Era quando a gente gostava tanto do outro, que deixá-lo feliz era mais importante do que satisfazer nossas vontades.

Assim, seja nas brincadeiras da sala de aula, nos desenhos animados ou nos detalhes pequenos do dia a dia, ela vivia buscando esse tal de amor.

• O encontrou todas as vezes que a Vilma, que trabalhava na sua casa, chegou mais cedo para que o bolo de fubá ficasse pronto na hora do café da manhã.

Também viu o amor quando a Catharina, sua melhor amiga de infância, brigou com aquela colega popular porque o nome da Maria não estava na lista da sua festinha de aniversário.

O encontrou no porteiro que decorava o nome de todos os alunos na hora de dar “bom dia”, e naquele baleiro simpático que sempre dava um desconto de “3 pacotes por 10”.

O amor também se fazia presente quando a sua mãe escolhia sua roupa, arrumava sua merendeira e passava horas brincando de boneca, montando lego e assistindo os desenhos da Disney.

• Ainda em casa, além do gole de Yakult, a Maria sabia que o seu pai a amava toda vez que ele a levava na escola, com a rádio ligada nos sucessos na década de 1980 — famosa “Antena 1”.

Ela se lembra de um dia específico, que chegou em casa chateada depois de um desentendimento na escola. Naquela ocasião, ele dirigiu com ela por horas, até que todos os problemas sumiram.

Seu pai também fazia o melhor churrasco no domingo e, uma vez por mês, levava a Maria pra ir ao cinema e comer McDonald’s.

• Talvez por todo esse amontoado de pequenas coisas, ela tenha esquecido “o que era o amor” quando ele foi embora sem se despedir.

Por mais que várias memórias da sua infância estejam completamente vivas na sua mente, ela não consegue se lembrar do dia em que ele partiu.

A Maria lembra de ver sua mãe chorando escondido no banheiro e da mala do seu pai que ficava encostada na porta do quarto. Mas, por incrível que pareça, não sabe dizer o que sentiu na falta do adeus.

Hoje, duas décadas depois do abandono, ela confessa que sente a ausência como uma cicatriz. É como se a ferida não tivesse mais exposta, mas ainda desse aquela fincada de dor quando alguém cutuca.

Com muitas sessões de terapia, a Maria aprendeu que nossas “faltas” nunca serão preenchidas, mas admite que tenta brincar com a presença — seja dando um gole de Yakult ou escutando “Antena 1” em uma tarde de domingo.

Fonte e imagens: The stories / Reprodução 

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