domingo, 29 de outubro de 2023

Amor e saudade

Quem anda ocupando o seu peito de saudade? marque aqui aquele amigo que faz falta no seu dia a dia.

Efêmero e Eterno


Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade.

O comentário acima foi feito pela escritora Cecília Meireles, que tem a fugacidade do tempo e a transitoriedade da vida como um dos traços fundamentais de suas poesias.

Nessa mesma linha, na obra “A transitoriedade”, Sigmund Freud conta sobre um amigo que menospreza o presente em detrimento de um futuro antagônico — de que vale a beleza de uma flor que amanhã estará murcha?

• No caso, mesmo diante de uma coisa boa, o homem se entristeceu ao se dar conta de que, em breve, nada daquilo existiria mais.

Freud contesta essa visão pessimista e ressalta que a finitude do belo não deve levar à sua desvalorização. Em suas palavras, “o valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo”.

Voltando pra Cecília Meireles, aprender docemente as relações entre o efêmero e o eterno nos faz desfrutar de cada momento da vida como se fosse único — até porque, de fato, todos eles são.

Saber que a nossa jornada no mundo é passageira pode ser um convite à emergência das pequenezas da vida: uma flor que brota, um sorriso despretensioso ou um encontro orquestrado pelo destino.

Em vez de se angustiar pelo que um dia terá fim, tente enxergar a beleza do efêmero. Nas palavras de Freud, “se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso”.

Saudade sem tradução
(Baseado em uma história real)


A Paula sempre buscou entender e conhecer o amor. Achava que contos de fadas eram reais e que o amor só poderia ser desse jeito — mal sabia ela que ele sempre esteve presente em seu vida.

• Desde que se entende por gente, a saudade a acompanha diariamente e, muito cedo, ela entendeu que esse conceito não tem tradução.

Como sua mãe é paraguaia e seu pai brasileiro, a Paula teve o privilégio de pertencer a dois países: nasceu lá e cresceu aqui.

Com essa configuração familiar, ela descobriu muito nova o que era sentir saudade, principalmente dos seus avós. A ansiedade era grande por cada encontro.

Todas as férias, sem exceção, ela contava os dias para que pudesse amenizar essa falta, que era suprida com muito amor, colo, carinho, tererê no verão, conversas na varanda com seu avô e comida deliciosa feita pelas mãos da sua avó.

• Ela consegue sentir o cheiro saindo da cozinha só de lembrar, assim como a mão macia e carinhosa do seu avô, que desde o primeiro momento não soltou a sua.

Naquela época, as ligações eram limitadas, o preço absurdo reduzia esse contato a poucos minutos, que nunca eram suficientes para contar tudo que se passava na vida da Paula.

Mesmo assim, toda vez que viajava até a casa deles, ficava admirada com a delicadeza e simplicidade dos detalhes.

Sua avó, filha de espanhola, guardava com carinho sua boneca dançarina de Flamenco. Seu avô, paraguaio de raízes, levava consigo o violão que o acompanhou durante anos — e fez parte da banda que ele tinha com seus irmãos.

• Ela sempre foi brava para conseguir manter a casa de pé, e ele sempre estava pronto para fazer uma piada que a irritasse, malandro que só.

Sua avó era a pessoa mais forte que a Paula já conheceu, e o seu avô, a mais engraçada. Ele levava ela no limite com suas piadas, mas esse descompasso era só a forma deles de amar.

Foram mais de 50 anos juntos. A vida não foi fácil para os dois, sem tréguas em muitos momentos. Porém, em suas diferenças, eles encontraram o equilíbrio e o amor para construírem uma família.

Pensando no lado bom dos avanços tecnológicos, com o passar do tempo, a Paula não precisava mais mensurar o tempo das suas ligações, e até conseguiu diminuir a distância com a chegada das chamadas de vídeo.

Por outro lado, as idas ao Paraguai começaram a diminuir. A vida aconteceu e começou a ficar agitada. Prioridades mudaram, a faculdade apertou e o trabalho limitou as férias.

• Mas a saudade seguia ali, todos os dias. Alguns mais difíceis, e outros acompanhados de sorrisos e lembranças gostosas.

A Paula teve a sorte de passar o Natal de 2019 com eles, mas jamais imaginaria o que estava por vir no ano que entrou.

Com a chegada da pandemia, veio também a saudade que ela nunca sentiu igual. Da noite pro dia, tiraram dela o direito de voltar pra sua cidade natal. Era como se não existisse mais remédio que curasse a falta.

Mesmo se não tivesse assunto, a Paula conversava com eles semanalmente. Até que, de forma sorrateira e repentina, uma doença tomou conta do seu avô.

Ela nunca vai esquecer da última ligação, no dia 21 de setembro de 2020. Com um beijo jogado ao ar e uma benção de despedida, dava pra saber que aquele adeus era eterno.

• A Paula sempre soube que esse momento chegaria, mas nunca imaginou não poder estar lá quando isso acontecesse.

Depois disso, a saudade mudou. Ela doía mais, era mais real, mais forte. Junto com ela, também veio a preocupação com a sua avó: como seria a sua vida sem o seu companheiro?

A Paula lembra de quando ligaram pra contar que a sua avó tinha parado de comer. Incisiva, ela decidiu que ia tentar convencê-la do contrário — mesmo que só pelo telefone.

Do outro lado, a sua avó foi pontual e apenas disse: “minha filha, eu não sei ter outra companhia”.

Foi ali, 2 anos depois da morte do seu avô, que ela entendeu. Estava fazendo planos para ir pro Paraguai, mas a sua avó não a esperou: no dia 07 de agosto, foi fazer companhia pra quem a aguardava lá de cima.

Desde então, todo amor e saudade da Paula foram transformados em lembranças. Em sorrisos que aparecem sem avisar e lágrimas que escorrem vez ou outra.

Pensando no “copo meio cheio”, veio também a certeza de que o amor sempre esteve em seu caminho. Ela sabe que essa história não chega nem perto de um conto de fadas, mas consegue preencher todo o seu coração.


Texto e imagens: The stories / Reprodução

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