domingo, 26 de novembro de 2023
Ninguém vai embora

Ainda que as pessoas entram e saiam das nossas vidas, ninguém nunca vai embora. como somos feitos de memórias, alguma parte sempre fica.

O Mapa


(…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

O trecho faz parte do poema, “O Mapa”, de Mario Quintana. Conhecido como “poeta das coisas simples”, o artista gaúcho era mestre em retratar temas cotidianos com leveza.

• No início da obra, ele faz uma homenagem à sua cidade natal, Porto Alegre, dizendo que sente “uma dor infinita das ruas de onde jamais passará”.

Depois disso, na parte que selecionamos pra edição, ele escolhe palavras doces para retratar a certeza mais temida por todos nós: o fato de que estamos aqui apenas de passagem.

Como bem disse Mario Quintana, um dia desses, seremos “poeira ou folha levada no vento da madrugada”.

Mas, ao contrário de quem teme esse encontro com o desconhecido, ele prefere enxergar a incerteza de outra forma. Em suas palavras, será um pouco do nada “invisível, delicioso”.

E aí, quando a ausência bater na ponta de quem fica, ele mostra que a presença continua, fazendo com que o “teu ar pareça mais um olhar, suave mistério amoroso”.

• Seja partindo pra outro plano ou saindo de um relacionamento, a verdade é que ninguém nunca vai embora.

Como somos feitos de memórias, alguma parte sempre fica. Seja a lembrança do toque, a recordação do cheiro, a muda de roupa que ficou pra trás ou aquela música que te tira um sorriso do rosto em uma tarde modorrenta.

Assim, para não temer as partidas, talvez o segredo seja aproveitar ao máximo as chegadas. Como já dizia Carlos Drummond de Andrade, “não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”.

Pronto pra partir
(Baseado em uma história real)


O vovô Olavo era um daqueles velhinhos de filme, de bigode branco e um sorriso que ficava estampado diariamente no rosto.

Mas, como diz a Rachel, sua neta, ele era a prova viva de que a alma nunca envelhece: aos 85 anos, seu Olavo continuava adotando o famoso estilo “bon vivant”.

• Além de curtir a vida ao lado dos amigos e da família, ele meditava todos os dias e ainda escrevia e revisava textos.

Seu Olavo amava um cafezinho e um biscoito de queijo bem crocante e queimadinho. Sempre tinha uma história na ponta da língua, e sua risada era a mais gostosa do mundo.

Como renomado escritor em sua cidade, Olavo chegou a ser presidente da Academia Mineira de Letras, e foi homenageado como “uma pessoa exuberante pela inteligência, generosidade e escrita cativante”.

A Rachel também admirava tudo isso nele, mas gostava ainda mais do avô que sempre pegava ela no colo, e dizia: “eu estou aqui pra cuidar de você e seremos amigos para sempre”.

Essa promessa com pé na eternidade parece até vaga, mas não é que foi verdade? Eles viajaram juntos tantas vezes. Se encontravam toda semana, e ele era sempre o primeiro a saber qualquer novidade da vida dela.

• Os dois tinham um eterno “só entre eles” que dava até ciúmes no resto da família, mas não descumpriam o trato: “não contra pra ninguém, hein?”

Seguindo nesse companheirismo de sempre, há duas semanas, a Rachel foi almoçar na casa do seu avô. Ele tinha acabado de voltar de São Paulo, e contou que tinha decidido “viajar e curtir a vida até o último segundo”.

Os dois deram muita risada e repetiram a goiabada de sobremesa, mas a Rachel sentiu que ele parecia mais cansado do que o normal.

Resolveram, então, passar no médico pra fazer um exame de rotina. Ela imaginava que não seria nada demais, só alguns minutinhos pra confirmar que o seu Olavo continuava saudável como sempre.

• Porém, chegando lá, uma notícia pegou a Rachel de surpresa: mesmo sem nenhum câncer primário conhecido, seu avô estava com inúmeras metástases.

O diagnóstico foi certeiro, e os médicos já falaram que não tinha jeito. Dali pra frente, o caminho era seguir com os cuidados paliativos, pra diminuir o sofrimento do seu Olavo na hora de partir.

A Rachel ficou totalmente desnorteada, mas juntou todas as suas forças pra contar a notícia pro seu avô da forma mais doce possível.

Depois de explicar toda a situação, ele abriu um sorrisão e disse: “que bom receber essa notícia vindo de você…. sabe que eu tava pensando nisso? Estou pronto pra próxima viagem. Vou lá e jajá eu volto, você sabe, né?”

• Uma semana depois, ele partiu. O sofrimento veio forte, mas acompanhado da certeza de que a Rachel viveu uma vida incrível ao lado do seu avô.

Ela curtiu ele tanto… Amou ele tanto. Realizou muitos sonhos ao lado dele, e ainda teve a oportunidade de morar um tempo em sua casa. O seu avô era o seu melhor amigo, seu colo e seu confidente.

Acostumar com a “presença da ausência” nunca é fácil, mas a maior lição que a Rachel tira dessa história é o que seu próprio avô dizia: “a gente precisa sonhar como se a vida fosse eterna, mas devemos estar prontos pra partir”.

Se pudesse voltar no tempo, ela não faria nada diferente. Com muita presença, carinho e uma escuta sempre atenta, ela aproveitou ao máximo a companhia do seu Olavo.

Se ele conseguir escutá-la de onde quer que esteja, seu recado é esse: “Boa viagem, vovô! Daqui a pouco estamos juntos de novo. Você me carregou no colo quando eu cheguei pra essa vida e eu segurei sua mão até você partir. Já sinto sua falta e te amo para todo o sempre”.

Fonte e imagem: The stories  / Reprodução 

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