domingo, 28 de janeiro de 2024
Memória afetiva

Tem alguma receita que te faz voltar pra infância? sinta o gostinho de nostalgia em nossa história de hoje

Amar os outros



“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros.”

Essa é a descrição do escritor e biólogo de Moçambique, Mia Couto, sobre o ato de se arriscar na cozinha.

• Em seu livro “O Fio das Missangas”, ele traz poesia pra quem prepara uma refeição, e mostra que cozinhar é uma verdadeira declaração de amor.

Inclusive, se a gente pensar bem, tem até um lado místico em preparar uma refeição. Assim como as práticas de alquimia da Idade Média, nas panelas, vai primeiro o óleo e depois o tempero.

E aí, com uma seleção de ingredientes e uma mão que coloca amor na mistura, nos deparamos com uma explosão de cheiros — e sabores — que ocupa todos os recintos da casa.

Indo além do lado afetivo, a história da humanidade também passa pela história da gastronomia, que associa Paris a um prato de escargot, Minas Gerais a um pão de queijo e não pensa na Bahia sem pensar em Acarajé.

Você saboreia uma pizza e lembra da sua viagem pra Itália. Ou come um macarrão a bolonhesa feito pela sua mãe, e afirma com convicção de que nem no melhor restaurante de Roma dá pra experimentar algo parecido.

• Pra algumas pessoas, casa de vó tem gosto de bolo de fubá e café preto ficando pronto.

Para outras, misto quente e leite com Nescau tem sabor de infância. Tem gente que se apaixona por um omelete bem feito, e tem gente que se apaixona por quem não sabe nem fazer ovo mexido.

Preparando um “spaghetti al limone” com um salmão no ponto, ou queimando uma torrada na tentativa de agradar a pessoa amada no café da manhã, cozinhar é um modo de amar os outros”.

O que ganhamos com tudo que perdemos
(Baseado em uma história real)



Meses atrás, a Giuliana perdeu o seu avô. Não só ela, naturalmente, a família toda se despediu de uma pessoa que por muitas décadas foi seu farol, seu Norte.

Nas semanas que passaram, ela se viu inundada por um fluxo gigante de emoções misturadas e foi praticamente impossível compreender o papel de cada delas uma no seu processo de luto.

Depois de semanas tentando organizar sua bagunça mental, seguiu fixa na sua mente uma frase que uma pessoa querida disse enquanto oferecia seus pêsames:

“O ruim de perder nossos avós é que a gente perde a infância junto. Afinal, algumas das melhores memórias que temos da época de crianças foram com eles.”

Como uma overthinker por natureza, ela passou dias dissecando essa frase pra entender duas coisas.

• Primeiro, se concordava com ela. Segundo, se a achava reconfortante — ou apenas triste.

Nesse processo de análise que elas vieram, como um tsunami inundando sua mente que já estava afogada de tantas outras coisas: as memórias da infância com o vovô e a vovó.

A Giuliana lembrou de todas as vezes que o seu avô tentou ensinar para os netos seus truques de mágica. Persistente, ele não desistia: repetia e repetia até que todo mundo pegasse o jeito.

E, depois de muito treino, assistia todo orgulhoso a apresentação dos seus pequenos na frente da família toda — ignorando os resultados lastimáveis de quem não tinha talento pro show.

Ela lembrou também de quando sua avó a ensinava alguma coisa errada e, em seguida, olhava com um sorrisinho no canto da boca, colocava o indicador nos lábios e fazia um “shhhhhhh”.

• Sem mais explicações, a Giuliana sabia que aquilo tinha acabado de virar o segredo das duas. E como ela se sentia especial em ter esses segredos.

Inclusive, ela guardou todos eles como se fossem joias preciosas. Sabe quando você só precisa trocar um olhar com a pessoa, e ela já sabe exatamente o que você está pensando? Era mais ou menos essa a sensação.

Depois de ter o coração saudosamente aconchegado por essas lembranças, a Giuliana continuou escavando sua mente à procura de outras memórias, até que outra ficha caiu.

Ela se deu conta de que toda vez que mergulha em alguma piscina ou no mar, ela escuta a voz do seu avô. É algo tão usual e natural que ela nunca tinha se questionado de onde vinha.

• Aí que chegou a memória: o vovô, atleta e educador físico, foi quem ensinou todos os netos a cruzar as piscinas segurando a respiração debaixo d’água.

“Primeiro você fecha os olhos, respira fundo três vezes, e vai sem medo.” Segundo a Giuliana, sempre que estiver prestes a mergulhar em grandes planos na vida, vai lembrar dessa voz, fechar os olhos e respirar fundo.

Agora, quando pensa em laços afetivos, a comida é sempre um deles. Hoje, adulta e formada, ela pode encher a boca pra dizer que batata frita é, de longe, a sua comida favorita.

Ela nunca tinha parado pra refletir de onde veio a paixão por essa iguaria zero saudável, mas aí se lembrou de quando passava as férias na casa da vovó, e ela fritava batatas fritas t-o-d-o-s-o-s-d-i-a-s.

• E não era qualquer batata frita. Eram as batatas da vovó. Cortadas em formato de meia lua, incrivelmente crocantes por fora e suavemente macias por dentro.

Eram deliciosas. Salgadinhas. Perfeitas. Naqueles almoços de férias, a vovó abraçava pela comida. E talvez por isso a Giuliana sinta um quentinho no coração toda vez que alguém diz: “pedi fritas pra você”.

Depois de toda essa reflexão, ela pede licença pra discordar da frase que o seu amigo disse quando a abraçou. Hoje, a Giuliana não acha que perdemos a infância quando os avós se vão. Na verdade, ganhamos a habilidade de recordá-la.

Fonte e imagem: The stories  / Reprodução 

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