segunda-feira, 15 de junho de 2020

O papo sempre estava bom, mas a luz piscava a primeira vez e nos alertava sobre a hora de voltar pra casa. Dali a pouco, viria uma segunda piscada para que todos nos apressássemos e em menos de dez minutos chegássemos em casa. Adolescente sente muito medo de escuro e eu e minha turma, não éramos diferentes.

Embora a cidade fosse muito pequena e as ruas não muito largas, a atmosfera rodeada de lendas e de mistérios transformava o caminho de 5 minutos entre a praça da igreja e a casa de vovó em uma estrada longa e assustadora. Eu, a maioria das vezes, voltava com passos rápidos e com aquela sensação do medo vindo atrás, que só acaba com o fechamento da porta e a lamparina acesa nas mãos.

As noites em Miritiba tinham um céu incrível. As estrelas e a lua não tinham vergonha de nada e nos presenteavam sempre com cenas de cinema. A luz elétrica só funcionava das 18h às 22h e por volta das 21h45, começava uma sequência de três piscadinhas que anunciavam o fim do expediente do “motor”. A essa altura, já tínhamos ouvido muitas histórias de assombração e lendas, que nossas cabeças fervilhavam de tanto medo.

O “Bronca” era o cúmulo da mitologia humbertuense! Onde já se viu existir um homem que se transforma em bicho? Pois em Miritiba, existia! Tirando o Professor Astromar que virava lobisomem em Asa Branca, cidade fictícia da novela Roque Santeiro, só o Bronca tinha um papel tão assustador em uma cidade.

E era fácil encontrá-lo pelas ruas vagando em noites escuras! A iluminação pública da cidade hoje é um absurdo de ruim, mas naquela época era muito pior e isso contribuía sobremaneira para que a volta para casa depois da missa fosse um completo terror, agravada pelo fato das ruas serem de areia e as galinhas, os porcos e os jumentos terem completa liberdade para andarem soltos pela cidade. Se o “bronca” virava bicho, qualquer um daqueles animais pastando sob a meia luz, poderia ser. De longe eu avistava qualquer coisa se mexendo e o meu coração palpitava de pavor. Corria léguas para não passar perto de nenhum animal à noite.

Estando em casa, aconchegada numa boa e confortável rede, a coisa só poderia ficar pior quando a temida “rasga mortalha” passava em cima de nossas casas com seu barulho assustador e anunciava a morte de alguém por aquelas bandas.

A combinação de noites sem energia elétrica, luz de lamparina iluminado pouco em casa e o medo natural que eu sempre tive do escuro, fantasmas e lendas, transformava aquelas férias em momentos muito marcantes, que hoje posso definir como felizes e ao mesmo tempo aterrorizantes, já que durante o dia eu tinha momentos de puro prazer e euforia e à noite lapsos de terror e medo agonizante.

Não tinha medo maior para mim quando o sol se punha e a escuridão tomava conta de todo o quintal. Nos fundos da casa da vovó ainda hoje corre um braço de rio com um farto mangue. Era lá que morava o “assoviador”!

Quando ouvia aquele assovio estridente, chegava a arrepiar, e embora vovó dissesse que era invenção do povo, o meu medo não dava ouvidos. Eu só conseguia transitar tranquilamente entre o quarto e a sala e assim meio de lado, para não ter que virar para a cozinha e ver o escuro do mangue. Em noites de lua cheia, a coisa era pior e lembro-me de um dia ter ouvido o pavoroso assovio e ter entrado com tanta rapidez em casa, que deixei minha havaiana do lado de fora da porta. Só recuperei meu querido chinelinho na manhã seguinte, ainda emborcado de tanto medo.

Todo o terror vivido por mim nesse período poderia ser amenizado, se a minha mãe fosse uma mulher corajosa para escuros e assombrações. Ela me acalmaria, me ensinaria que essas coisas são bobagens e me mandaria rezar o velho e bom “Santo anjo do Senhor...”, mas não! Mamãe tem a capacidade de ter mais medo que eu e foi vendo seu comportamento de pânico em relação à “mão cabeluda”, para que eu também criasse mais essa para a minha cabeça.

No interior, naquela época, as casas tinham uma arquitetura própria, com espaços entre o fim das paredes e o telhado. Ao mesmo tempo em que entrava um ventinho fresco à noite, entravam vários bichinhos e porque não, a mão cabeluda?

Mamãe não podia olhar para o vão no escuro que achava que viria uma mão cabeluda, sem um braço e sem um corpo - se é que você parou pra pensar nesse detalhe – para nos fazer algum mal e foi embalada nessas e muitas outras histórias de assombração, que vivi minha infância e adolescência.

Como num passe de mágica, os medos só sumiam quando eu voltava à minha vida de garota da cidade e retomava a minha convivência com desenhos animados, amiguinhos da escola e Barbies.

Imagino que quase nenhum dos adolescentes humbertoenses hoje saibam de histórias como essas, mas de uma coisa tenho certeza: eles jamais terão lembranças tão gostosas!

Texto Originalmente publicado na Edição N° 99 novembro 2012 do Jornal Cazumbá

0 comentários:

Postar um comentário