domingo, 18 de dezembro de 2016
É preciso combater disseminação de boatos com informação de qualidade, dizem especialistas





RIO - Num ano difícil como foi 2016, notícias divulgadas na última semana fazem parecer que as tragédias não cessaram. O tráfico internacional de órgãos tem atuado em cidades grandes da América Latina. Uma organização criminosa vem sequestrando crianças de até 5 anos nas ruas de São Paulo para remover seus órgãos. Os corpos, depois, são jogados em rios. Um crime semelhante ocorreu há uma semana, em Acapulco, no México, onde a polícia encontrou um caminhão abandonado com uma dúzia de corpos de crianças. As autoridades ainda não sabem o destino dos órgãos, mas acredita-se que eles sejam vendidos para famílias ricas na Europa ou nos EUA. Em ambos os casos, no Brasil e no México, fotos e vídeos circulam em redes sociais mostrando a ação dos criminosos.

No Rio, o caos foi provocado pelo clima. Alertada pela Marinha e pelo Instituto Nacional de Meteorologia, a cidade se prepara para a chegada de um forte ciclone subtropical. De acordo com as autoridades, o fenômeno se assemelha a um furacão capaz de deixar quilômetros de estragos. A população foi aconselhada a procurar locais seguros, longe da costa.

Em Brasília, o clima também está conturbado, mas por questões políticas. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pode perder o cargo porque é chileno, e a lei exige que apenas brasileiros exerçam a função. Maia nasceu em Santiago quando seu pai, o também político Cesar Maia, estava exilado no Chile. Já o presidente do Senado, Renan Calheiros, tem sido alvo de críticas no exterior. O jornal satírico francês “Charlie Hebdo” estampou na capa de sua última edição uma charge em que Renan desrespeita uma mulher vestida como o símbolo da Justiça (de olhos vendados e balança na mão), pousando a mão contra suas nádegas. O título do jornal foi: “Confirmado: A Suprema Corte do Brasil é uma m*”.

A política também causa celeuma nos EUA. O presidente eleito Donald Trump, que durante a campanha recebeu apoio até mesmo do Papa Francisco, anunciou nesta semana que o rapper Kanye West fará parte de seu governo. O desejo de Trump é nomeá-lo vice-presidente, retirando do gabinete o político republicano Mike Pence, que compôs a chapa com o magnata. Ações como essa de Trump levaram todas as bandas marciais de escolas de Washington a promover um boicote contra ele. A ideia é que elas não se apresentem na posse do presidente eleito, em janeiro, como de costume na tradição americana.

Todas essas notícias circularam na internet no período de uma semana. Foram compartilhadas por milhares de pessoas, nem sempre por má-fé. Algumas foram parar em sites sérios, outras geraram longos debates em grupos de Whatsapp e causaram, no mínimo, preocupação. Nenhuma delas é verdadeira.

PÓS-VERDADE É A PALAVRA DO ANO

Além da realidade conturbada, 2016 será lembrado como o ano em que ganhou força a fantasia de boatos, mentiras e teorias conspiratórias na internet, a ponto de influenciarem eleições. Uma pesquisa da Universidade Stanford, nos EUA, divulgada no fim de novembro, mostrou que mais de 80% dos adolescentes americanos não sabem julgar com precisão a credibilidade de uma notícia em suas redes sociais.

Não à toa, o dicionário Oxford elegeu o termo “pós-verdade” como a palavra do ano. Entre suas motivações estava a substituição de fatos por crenças e anseios nos debates sobre a disputa presidencial americana e o referendo para decidir a saída do Reino Unido da União Europeia. Na definição do Oxford, “pós-verdade” é um adjetivo que “lida com circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública do que o apelo a emoções e crenças pessoais”.

Em resumo, a pós-verdade segue a lógica de uma famosa frase da boneca de pano Emília, personagem de Monteiro Lobato. Nos tempos atuais, “a verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia”.

— Na eleição americana, políticos usaram as notícias falsas como forma sistemática para denegrir um lado e apoiar o outro. E também houve casos de mercenários querendo lucrar com a publicidade gerada pelo acesso aos sites de notícias falsas. A situação mais notável foi de adolescentes da Macedônia que ganharam milhares de dólares com anúncios em sites que publicavam notícias que os apoiadores do Trump queriam ler, mas que não eram verdade — afirma Rosental Calmon Alves, diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas.

Segundo Rosental, as notícias falsas se proliferaram com mais intensidade a partir da popularização das redes sociais e do que ele chama de “ambiente de mídia eucêntrico”. Antes, a divulgação de informações era centrada em veículos de mídia tradicionais, mas, aos poucos, cada usuário foi entendendo as possibilidades de alcance de sua rede. Há quem a use com responsabilidade, claro, mas existem aqueles que buscam compartilhamentos ou curtições a qualquer custo, sem compromisso com a verdade. No meio dos dois grupos, estão internautas desavisados, desligados ou ingênuos, gente que realmente acredita em tudo que lê por falta de compreensão dessa nova cultura midiática.

Daí, em 2016, espalharam-se notícias como um plano bolivariano de invadir o Brasil ou o papel de Barack Obama na fundação do Estado Islâmico — este último difundido pelo próprio magnata americano Donald Trump, um dos principais atores da pós-verdade.

— Passamos por uma crise, mas acredito que aos poucos as pessoas vão desenvolver um desconfiômetro para saber que não se pode acreditar em qualquer coisa — diz Rosental. — O privilégio que os meios de comunicação tinham deixou de existir. E o jornalismo foi muito lento ao reagir a essas notícias falsas. Minha geração não desmentia boato porque achava que assim não valorizaria quem espalhava essas coisas. Mas, neste ambiente digital, é obrigação do jornalismo checar mais rapidamente os fatos. Uma notícia falsa na rede é como fogo no mato, espalha-se muito rapidamente. O jornalismo precisa enxergar isso como oportunidade.

SEMELHANÇAS COM O SÉCULO XIX

Naturalmente, boatos e mentiras não são exclusividade das redes sociais. Em seu livro “Insultos impressos”, a cientista política Isabel Lustosa mostra como a imprensa atuou no período da Independência do Brasil, em 1822, construindo narrativas e guerreando por opiniões. Ela acredita que a melhor forma de se coibir as notícias falsas na rede é simplesmente as rebatendo com notícias verdadeiras.

— No livro, eu uso uma frase que diz que a liberdade de imprensa é boa, justamente porque através dela os boatos podem ser contestados. Quando existe censura, quando apenas uma voz é aceita, aí é que não se tem como comparar opiniões — afirma Isabel. — As críticas de hoje a essa polifonia na internet são semelhantes ao que se falou no começo do século XIX no Brasil, pela quantidade de panfletos e jornais. Naquele tempo, podia-se publicar o que quisesse sem assinar, havia o direito ao anonimato. Então, havia muitas ofensas, sem nenhum tipo de restrição. Mas também havia o direito ao contraditório.

Hoje, com as dezenas de boatos espalhados pela rede semanalmente, há sites especializados em buscar esse contraditório. Em geral, são feitos por jornalistas, que buscam fontes mais confiáveis para confrontar uma possível mentira. Num desses, chamado “Boatos.org”, há desmentidos para uma notícia de que Messi doaria 10 milhões de euros para a Chapecoense, para uma informação supostamente vinda da Nasa de que a Terra teria seis dias de escuridão neste mês de dezembro e para um alerta sobre um garoto que perdeu os dedos ao atender um celular ligado na tomada.

O “Boatos.org” foi fundado pelo jornalista Edgard Matsuki em 2013, e é mantido por ele e mais dois colaboradores.

— Eu trabalhava com tecnologia e me impressionava como circulavam histórias falsas na internet. O grande problema é que o mínimo de informação falsa já pode influenciar alguém a formar uma opinião — diz Matsuki. — Alguns boatos são facilmente desmentidos, a própria notícia não faz muito sentido. Mas há outros mais difíceis. Eu lembro que, na Copa do Mundo de 2014, divulgou-se que a seleção da Argélia doaria seu prêmio aos palestinos da Faixa de Gaza. Jornais sérios chegaram a reproduzir a informação, mas ela vinha de um perfil falso do atacante da Argélia em uma rede social. Outra dificuldade é quando uma notícia é recheada de opiniões, alguns dados e, no meio dela, aparece o boato bombástico.

EMPRESAS DE TECNOLOGIA REAGEM

Pela repercussão da pós-verdade na disputa presidencial americana, empresas como o Facebook e o Google foram pressionadas a tomar atitudes para coibir a divulgação de informações imprecisas. O próprio Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, postou um comunicado em sua rede relatando sua preocupação com o problema.

Anteontem, enfim, o Facebook anunciou uma mudança significativa em sua plataforma para separar fatos de boatos. Entre as medidas, a rede social vai trabalhar com empresas jornalísticas de checagem para atestar a veracidade de uma notícia. O site também criou uma ferramenta para denunciar mentiras na rede e vai alertar seus usuários caso uma postagem seja falsa. O Facebook destaca que não vai tirar nada do ar, mas vai diminuir a relevância de uma notícia mentirosa nas páginas pessoais, além de colar nela um alerta para os usuários.

Por; ANDRÉ MIRANDA - http://oglobo
Imagem de vídeo usado em notícia mentirosa sobre sequestro de crianças - Reprodução

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