quinta-feira, 8 de março de 2018

O geógrafo carioca Carlos Humberto da Silva costumava receber visitantes em seu apartamento no bairro turístico de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, por uma famosa plataforma internacional de acomodações compartilhadas. Diversas vezes, encarou olhares surpresos dos hóspedes na chegada, quando se davam conta de que era ele o anfitrião. Um casal de holandeses chegou a sair de lá logo depois de encontrá-lo, sem dar motivo. E, quando colocou foto em seu perfil no site, Carlos viu a procura pelo imóvel diminuir.

Quando era ele que estava em viagem, também enfrentava constrangimento nos hotéis onde se hospedava. “Eu saía para jantar à noite com um grupo, por exemplo, e ao retornar sempre ouvia a famosa pergunta: ‘Você quer falar com alguém?’ ‘Vai onde?’ Perguntas que não faziam para os outros hóspedes”, conta.

Carlos é negro. Experiências como essas o inspiraram a criar, junto com amigos, um negócio em um mercado ainda pouco explorado no Brasil: o Diaspora.Black, uma rede de turismo voltada para a população negra.

“Vi que havia uma demanda para além da minha. Todo negro vive algum tipo de preconceito ou rejeição quando está viajando”, diz.

“Quis criar uma rede em que a gente se sentisse protegido e também onde pudéssemos trocar experiências e valorizar o legado e a cultura da população negra”, afirma.

O site, que começou a funcionar no ano passado, é focado atualmente em hospedagem. Há acomodações disponíveis em mais de 30 cidades brasileiras e em outros 12 países. No futuro, a ideia é incluir também restaurantes, passeios turísticos, centros culturais e outros serviços.

Algumas das acomodações disponíveis têm relação direta com a história e a cultura negra, como quilombos, terreiros e centros culturais. Três exemplos são o Quilombo da Rasa, em Búzios (RJ), a Casa do Perdão, terreiro de umbanda no Rio de Janeiro que oferece cursos e oficinas, e o centro comunitário Casa das Mulheres de Pedras, também no Rio.

Mas há também casas e apartamentos comuns. “A diferença é o viajante saber que vai ser bem recebido. Temos, por exemplo, o dono de uma pousada em Blumenau, uma cidade que não tem uma cultura negra tão manifestada, que simplesmente gostou da nossa proposta e disse: ‘Quero receber, trocar, quero que se sintam à vontade aqui’”, diz o jornalista baiano Antonio Pita, outro sócio do Diaspora.Black.

“As pesquisas mostram que a chance de um negro ser aceito por anfitriões é menor”, completa Carlos. “A cidade não precisa necessariamente ter um roteiro turístico ligado à história negra [para ser incluída no site]. A pessoa pode ir para o interior da Alemanha ou para a China, mas querer se sentir bem-vinda”.

Menos chance
Um estudo de 2016 da universidade americana Harvard, que avaliou a plataforma de hospedagem compartilhada Airnbnb, revelou que pessoas com nome tipicamente afro-americanos tinham 16% menos chance de serem aceitas pelos donos dos imóveis cadastrados do que candidatos com nomes tipicamente de pessoas brancas.

Outras pesquisas indicam que os algoritmos das plataformas convencionais restringem a visibilidade de anunciantes negros mesmo em bairros e cidades de maioria negra, afirmam os criadores do Diaspora.Black.

No ano passado, o dono de um apartamento em Amsterdã foi preso após jogar uma turista sul-africana escada abaixo por ela ter se atrasado para fazer check-out, uma agressão que segundo a vítima teve motivação racista. Em sites de notícias estrangeiros, é possível ler outros relatos de viajantes negros que se sentiram discriminados em hotéis ou sites de acomodação compartilhada.

Sem seleção de usuários
Atualmente, 74% dos usuários cadastrados no Diaspora.Black são mulheres negras. “A gente oferece a elas uma oportunidade de geração de renda com o aluguel das acomodações. É um adicional relevante no orçamento das famílias”, diz o designer carioca André Ribeiro, outro sócio do portal, que é considerado um negócio social (ou seja, visa lucro, mas tem impacto na sociedade).

Mas o site não faz seleção de usuários. Qualquer um, de qualquer etnia, pode se cadastrar. Segundo Antonio Pita, o critério é ter interesse e empatia. “Quando você se cadastra, está pactuando com uma rede que se posiciona frente a uma série de estigmas e opressões que essa população vive. Mas se você simplesmente quiser comer um acarajé em Salvador, a gente quer te indicar o melhor acarajé em Salvador”, diz.

Por do sol em frente ao Elevador Lacerda, em Salvador (Foto: Marcelo Guedes/ Ag Haack) Por do sol em frente ao Elevador Lacerda, em Salvador (Foto: Marcelo Guedes/ Ag Haack)
Por do sol em frente ao Elevador Lacerda, em Salvador (Foto: Marcelo Guedes/ Ag Haack)
Carlos, André e Antonio estão passando uma temporada em São Paulo, onde participam de um programa de aceleração de startups para o qual o Diaspora.Black foi selecionado. Eles estão na fase final de uma campanha de financiamento coletivo e planejam incluir na plataforma, nos próximos meses, agências de viagem e guias de turismo que fazem pacotes e excursões para a população negra.

Segmentação
O portal atualmente está disponível em quatro idiomas: português, espanhol, francês e inglês. Fora do Brasil, os usuários que mais se interessam pelo serviço vêm dos Estados Unidos. “Lá essa segmentação de mercado se chama Black Travel Movement, está muito bem estabelecida e movimenta US$ 48 bilhões por ano”, diz Antonio.

Carlos percebeu isso mesmo antes de criar a empresa, quando passou a receber turistas negros dos EUA interessados em trocar ideias sobre a cultura afro no Brasil. “Todos me diziam que era necessário ter uma ferramenta que reunisse serviços de turismo que acolhessem bem a população negra”, conta.

Sentado em um café na avenida Paulista, ele relembra um dos episódios mais marcantes que o levaram a criar o negócio.

“Sempre compro frutas, coisas tipicamente brasileiras, para os meus hóspedes. Recebi o casal de holandeses, desci para fazer as compras e, quando retornei, eles tinham saído e deixado um bilhete dizendo que não era bem o que eles esperavam. De fato eles não esperavam ser recebidos por um anfitrião negro. Porque meu apartamento é muito bom, aconchegante, no centro turístico de Santa Teresa. Tanto que eles fizeram o pagamento normalmente, não reclamaram de nada no site”, conta.

“Quando esse tipo de coisa acontece na rua, já é ruim. Quando é dentro da sua própria casa é ainda mais doloroso”, completa.

Um comentário:

  1. O preconceito é uma lástima e perdura em pleno Século XXI. Chega de racismo

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