sábado, 2 de abril de 2022
O consumo interno de mel é uma realidade triste e amarga. Cada brasileiro consome em média 60 gramas de mel por ano, contra mais de 1 quilo nos EUA

Por: Evaristo de Miranda



O Brasil é um gigante mundial na produção de açúcar e um anão, dos bem pequenos, na produção de mel. Já falta e pode faltar ainda mais do precioso mel no mercado interno. Falta mel porque falta produção; falta produção porque falta produtividade nas colmeias. E não haverá maior produtividade sem tecnologias modernas e um manejo mais profissional das colmeias.

Nos tempos bíblicos, não existia o açúcar. O mel era um elemento central da promessa divina a seu povo: uma boa terra espaçosa, onde corriam leite e mel (Is 3,8; Nm 14,8; Dt 6,3; 11,9; 26,9; 26,15; 27,3). Quem conhece as férteis terras vulcânicas da África do Leste, da América Central e das ilhas do Pacífico, as terras roxas do Brasil ou os ubérrimos solos da pampa argentina e da Ucrânia achará essa promessa, no mínimo, um exagero. Evocar o Vale do Jordão como terra boa e espaçosa parece ironia terrestre ou sarcasmo celeste.

Lá, a terra não é boa; é explorada desde o calcolítico; está erodida e desgastada; falta espaço; cada polegada é disputada mortalmente; o conflito estende-se à água, elemento raro na região; sobra gente, pretendente e ocupante (ou vice-versa), nessa estreita faixa de terra, de cada lado do Rio Jordão. A imagem do leite e mel não é apanágio do judaísmo. Ela também está presente na mitologia grega. Zeus foi alimentado numa gruta secreta pelo leite de Amalteia e pelo mel de Melissa. Aqui, apesar de Deus ser brasileiro, a terra ampla e os mitos abundantes, falta mel e sobra açúcar.

Em 2020, a produção nacional de mel foi da ordem de 52.000 toneladas (aumento de 60% com relação a 2004). É pouco, muito pouco. O Brasil é o 11º produtor mundial. Deveria estar entre os primeiros. O maior produtor é o Paraná. O Sul representa 38% da produção nacional; e o Nordeste, 37%. Quase empatadas, as duas regiões somam 75% da produção nacional.

O mel é como uma commodity, seu preço acompanha o mercado mundial. Com a praga da covid, o mundo aumentou a demanda por mel, na busca de maior imunidade. Os preços subiram e chegaram a mais de US$ 5/quilo. Com a valorização do dólar, exportar mel é bom negócio. Em 2020, o Brasil exportou cerca de 46.000 toneladas: 75% aos EUA e 12% à Alemanha. Mais de 88% de sua produção! O mel brasileiro é de qualidade e puríssimo. A exportação para a Alemanha, país extremamente rigoroso nas análises da qualidade do mel importado, o comprova.


O consumo interno de mel é uma realidade triste e amarga: ele é a sobra das exportações. Cada brasileiro consome em média 60 gramas de mel por ano, contra 240 gramas dos argentinos e mais de 1 quilo nos EUA, na Europa e em vários países da Ásia. Apenas 53% do mel é consumido in natura na mesa dos brasileiros, cerca de 35% destina-se à indústria de alimentos e 12% vai para a indústria de cosméticos, tabaco e ração animal.

Quem produz mel são as abelhas, e elas trabalham muito. Para produzir 1 quilo de mel, são necessários 2 quilos de néctar. Para isso, cerca de 1 milhão de flores são visitadas por 50.000 abelhas. A cada saída, uma abelha visita pelo menos algumas dezenas de flores, para obter cerca de 40 miligramas de néctar. Além disso, as abelhas produzem cera, própolis, geleia real, regulam a temperatura da colmeia, alimentam larvas e garantem a defesa da colmeia. As operárias vivem em média 45 dias. Rainhas vivem de dois a quatro anos.

A organização das abelhas sempre fascinou os humanos. Aristóteles apresentou uma das melhores descrições, circunstanciada e completa, da vida das abelhas no capítulo 40 de sua História dos Animais. Manejo das colmeias e plantio de plantas nectaríferas faziam parte das técnicas e tecnologias já conhecidas naquele tempo. Virgílio, nas Geórgicas, trata da criação e dos cuidados na apicultura. Com o tempo, desenvolveram-se cada vez mais as técnicas de domesticação e manejo das abelhas.

No Brasil, as abelhas europeias (Apis mellifera) foram introduzidas em 1839 pelo padre Antonio Carneiro, em colônias vindas do Porto (Portugal). As abelhas do Brasil de então eram e são os meliponíneos, sem ferrão. A chegada dessa espécie exótica de clima temperado não foi sem consequências negativas para as cerca de 250 espécies de abelhas indígenas brasileiras, tipicamente tropicais, como a jataí, a mandaçaia, a mandaguari, a uruçu, a jandira etc., fundamentais na polinização em muitos ecossistemas. Algumas dessas espécies produzem mel de boa qualidade, porém sempre em muito menor quantidade, quando comparadas à abelha europeia.


São diversos e benéficos os produtos do trabalho da abelha: cera, cerume, resinas ou própolis, mel, geleia real, pólen e seu corolário, a polinização das culturas, essencial à produtividade agrícola, principalmente nos pomares.

A cera é utilizada desde a Antiguidade como principal matéria-prima de velas e círios. A abelha participava da iluminação de casas e templos, às vezes substituindo o azeite das lâmpadas. E servia na vedação de ânforas, garrafas, silos de madeira ou metal. Defeitos ou frestas em móveis e peças de madeira são preenchidos com cera de abelha nas áreas rurais do Brasil. A palavra sincero (do latim sincerus, limpo e puro) associaria seu significado ao uso da cera para disfarçar imperfeições nas esculturas defeituosas. Sincero = sem cera, sem remendo, sem falhas ou rachaduras ocultas.


O pólen é uma espécie de fina poeira dourada. Elemento masculino, ele esvoaça das anteras das plantas floríferas. Sua função é fecundar os óvulos, o elemento feminino da sexualidade vegetal. Esse ouro vegetal é coletado pelas abelhas. Elas o transportam em suas patas, levando-o de flor em flor, de antera a estigma, e contribuem à polinização.


O própolis é uma substância resinosa usada com a cera para construir alvéolos, reparar fendas e também envolver cadáveres de animais mortos no interior das colmeias. Possui propriedades terapêuticas, como antisséptico e antibiótico. O nome vem do grego e ilustra sua importância para a cidade das abelhas, a colmeia: em defesa (pro) da cidade (polis).


Nenhum inseto possui, para o humano, simbolismo tão universal e amplo quanto o da abelha. Ele envolve o individual e o coletivo, o temporal e o espiritual. Como coletividade, as abelhas simbolizam organização, disciplina e cooperação. Os padres da Igreja e autores monásticos tomaram as abelhas, ativas e dedicadas, como modelos para os monges. Elas vivem e produzem em células, como nos mosteiros. Convivem em santa obediência à ordem e à hierarquia. Da palavra abelha, dvora, em hebraico, derivam os nomes Débora, Dora, Dvorith ou Dorite, e Melissa e Abelardo. Dvorá também significa, em hebraico, palavra, davar, o Verbo de Deus, termo feminino.

Quem cuida de abelhas, colmeias e de seus produtos são os apicultores. A muitos deles falta algo abundante nas abelhas: especialização. Pelo Censo Agropecuário (2017), havia mais de 100.000 apicultores explorando um total de quase 2,2 milhões de caixas de abelhas. Uma média de 21 caixas ou colmeias por apicultor. Apesar dos grandes apicultores tecnificados, a grande maioria são pequenos produtores, com poucas caixas. Para eles, a apicultura é uma atividade marginal, uma oportunidade de renda adicional, com pouco investimento de tempo, trabalho e capital.

Propor mel na merenda escolar ou na cesta básica, mesmo apenas 4 gramas por dia, geraria uma demanda adicional de 10.000 toneladas

Os próprios programas de desenvolvimento da apicultura apresentam a atividade como um possível complemento de renda, nunca propõem ao produtor viver da apicultura. Pequenos agricultores já têm dificuldades em profissionalizar suas atividades principais e investir em tecnologias. Quão maior não seria seu desafio em investir na apicultura sem apoio efetivo?

O reflexo do escasso investimento nos apiários está na baixa produção anual por colmeia no Brasil: cerca de 20 quilos. Na Argentina e no Canadá, ela é de 35 quilos. O número cresce em vários países, chegando a mais de 100 quilos por colmeia na China e na Austrália. As condições tropicais e a diversidade da flora e da vegetação podem garantir pelo menos 40 quilos/ano. Essa deveria ser a meta mínima da apicultura nacional.


Até 20 anos atrás, a produção de mel dirigida ao mercado de laticínios era para a produção de iogurtes. A abertura do mercado externo, em 2001, valorizou o mel. O aumento das exportações desabasteceu o mercado de laticínios. Diante disso, o setor de laticínios aprovou no Congresso uma legislação autorizando a utilização de um preparado de mel (água, xarope de açúcar, glicose, mel, conservantes e aromatizantes) nos iogurtes. Isso diminui consideravelmente sua qualidade.

Nenhuma campanha deveria incentivar o consumo de mel. Propor mel na merenda escolar ou na cesta básica, mesmo apenas 4 gramas por dia, geraria uma demanda adicional de 10.000 toneladas. Exigências normativas para melhorar a qualidade e a informação sobre produtos com mel e seus ingredientes (iogurtes, granolas, biscoitos e xaropes) exigiriam 20.000 toneladas adicionais de mel. Não há volume para atender tal demanda.

A agropecuária brasileira precisa de mais e melhores apicultores; o extrativismo em colmeias não tem sustentabilidade. A solução para melhorar a qualidade dos produtos com mel em seus ingredientes e aumentar o consumo do mel in natura no Brasil depende do aumento da produção. Esse aumento só resultará de ganhos em produtividade, através de inovações tecnológicas e manejo mais profissionalizado, não há outra alternativa; e ela não é amarga. Como diz um provérbio de Québec: abelha acomodada não produz mel (Abeille qui reste au nid n’amasse pas de miel). O Brasil ainda não é a terra de leite e mel. Por enquanto, é só a do leite.

Texto e fotos: Revista Oeste

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